Por Alfredo Bosi / adaptado por Manoel Lopes
Pouco antes de ter
chegado ao final da sua viagem pelos reinos do Além, Dante avista do Paraíso o
nosso planeta. E desta nossa Terra não fala senão em um verso terrível: “O
canteiro que nos faz tão ferozes”.
Era o exilado que,
traído pelos aliados e condenado à perda de cargos públicos, estendia a sua
indignação a todos os seres humanos, não excluindo nem mesmo a si próprio.
A ambição do poder
sobre a morada comum excita em cada indivíduo a mais cruel agressividade e “nos
faz tão ferozes”. Como resposta à traição, o poeta voltou-se para a utopia de
um imperador justo e justiceiro, no caso, Henrique VII, idealizado como salvador
da Itália e moderador, em nome do Sacro Império, das pretensões do papado.
Recorrendo à utopia,
Dante punirá exemplarmente seus adversários, lançando-os ao Inferno. A poesia
resistia eticamente às práticas cínicas da política facciosa da burguesia
florentina. Esta, por sua vez, alienava os que pertenciam ao “povo miúdo” para
se servir deste como massa de manobra.
Impedido de exercer seus
direitos de cidadão, condenado injustamente como vereador corrupto, o poeta
toma distância da pequenez das facções, os “brancos” e os “negros”, convertendo
na mais alta poesia a sua sede de justiça.
Essa via ideal, que
exprime a fidelidade aos valores primeiros, éticos ou religiosos, não foi
certamente o caminho traçado, três séculos mais tarde, pelo fundador da ciência
política moderna, o também florentino Maquiavel.
Expulso da sua cidade
pelos Medici, aos quais serviu mais de uma vez, Maquiavel centrou baterias no
que chamava “a verdade efetiva das coisas”, “la verità effettuale della cosa”.
Para tanto, estudou
os regimes das comunas e das senhorias italianas, bem como das grandes
monarquias que se combatiam sem cessar na Europa entre os séculos XV e
XVI. O que interessava a Maquiavel era a prática dos que tinham alcançado
e mantido o poder, ora com a força do leão, ora com a astúcia da raposa.
Como observador
rigoroso, examinou os interesses que moviam os projetos dos chefes de Estado,
os “príncipes”, os mesmos interesses que o marxismo de Antonio Gramsci iria
atribuir aos políticos enquanto porta-vozes da sua classe social.
O chamado realismo
maquiavélico, oposto ao idealismo utópico de Dante, é o caminho trilhado pelos
vencedores, que tendem a agir como tiranos, disfarçando com astúcia os abusos
da sua força.
Basta olhar para o
cenário político contemporâneo a nós, neste início do terceiro milênio, para
constatar que essa última escolha se tornou geral no Brasil, mas não só aqui. O
realismo degenerou em cinismo descarado. A força confundiu-se com o uso da
violência pura e crua.
A astúcia não é mais
do que um misto de esperteza e hipocrisia. As aspirações de democracia,
tolerância e justiça social mal conseguem sair da esfera do utopismo idealista.
A saída não é fácil, pois
exige uma rara combinação seletiva das duas vias em contraste. Difícil, mas
absolutamente necessária, a solução para o impasse talvez se alcance na seleção
das qualidades que se encontram em cada uma das opções. Da posição utópica
devem ser mantidos e preservados os valores éticos de justiça distributiva e
liberdade democrática.
Do realismo deve-se
colher o uso de meios políticos e econômicos para atingir os fins do bom
governo. Da opção idealista provém a esperança, sempre renascente, de que é
possível harmonizar a sobriedade nos gastos públicos com as conquistas sociais
do século passado.
Sobriedade e bom
senso aqui não devem se enrijecer nos dogmas da austeridade monetarista. Da
opção realista, a certeza de que a Terceira Via passa por um longo trabalho de
educação política do eleitor e dos eleitos.
Ficariam assim
descartados os ideólogos que vivem mergulhados em fantasias verbosas, bem como
os que já se afundaram na armação de golpes de todo gênero.
A pergunta crucial
que o leitor tem o direito de fazer é: mas essa combinação virtuosa de ideal e
real é possível? Lembro que o projeto de uma Terceira Via equidistante do
Estado Leviatã e do mercado todo-poderoso foi tentada, embora parcialmente, ao
longo do século XX.
Chamou-se Estado do
Bem-Estar na Suécia; Trabalhismo na Inglaterra; Democracia-Cristã na Itália e
na Alemanha, e compareceu nos programas reformistas e social-democráticos da
França do imediato pós-Guerra.
A infidelidade dos
seus adeptos aos valores que, de início, os norteavam descambou em recaídas no
mais pífio neoliberalismo. O que resta dos programas de centro-esquerda na
Europa de hoje? Que partido político procura tornar viáveis, em termos leigos,
as ponderações emanadas do Concílio, propostas nos documentos dos anos 60,
abertas à legislação trabalhista e aos princípios da Economia Humana formulados
pelo Padre Lebret em obras memoráveis? Que agremiação social-democrática tem se
mostrado sensível aos apelos do papa Francisco no sentido de uma reforma
socializante do sistema econômico dominante? Estarão os cristãos progressistas
a pregar no deserto?
Na verdade, a
Terceira Via ainda está à espera de uma construção racional que guarde no seu
bojo a exigência ética de um Dante Alighieri e o realismo arguto de um
Maquiavel. Gestores sem política social são tão desastrosos quanto políticos
sem pés no chão…
Ao chegar ao fim
deste ano fecundo em surpresas estarrecedoras, devemos respirar fundo, pois a
tentação do ceticismo ronda milhões de cidadãos brasileiros em face do triunfo
do mais grosseiro oportunismo que parece ter tomado conta da nossa vida
pública, atingindo boa parte da mídia. Cada vez fica mais claro que resistir às
seduções malsãs do capitalismo rentista é bem mais difícil do que se entregar a
elas.
A divisa dos que
confiam em uma Terceira Via poderia ser a frase da Escritura, Spes
contra Spem: a esperança verdadeira contra as ilusões de uma falsa
esperança.
Alfredo Bosi é
professor emérito da Universidade de São Paulo, crítico e historiador de
literatura brasileira e membro da Academia Brasileira de Letras.
Parabéns PC! Bela iniciativa, isso aí caminhe junto com o povo. Não faça como o Dr. que escondeu no gabinete durante os 4 anos.
ResponderExcluirEscondeu mais não roubou muito!
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