Coveiro trabalha no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo Imagem: Getty Images |
Quando chegamos a 100 mortes por covid-19 num único dia, imaginamos que cruzar a barreira de 500 derrubaria, para sempre, a popularidade do governo. Quando esse número foi atingido, cravamos que, ao batermos as 1000 vidas perdidas, haveria uma convulsão contra Bolsonaro. Alcançado esse patamar, houve a profecia de que ultrapassar os 1500 óbitos em 24 horas poderia levar ao impeachment. Agora, circulam nas redes sociais que 2000 mortes por dia será o fim do regime civil-militar implementado pelo ex-capitão. Mas quando estivermos lá, e, pelo ritmo, infelizmente estaremos, vamos postar memes dizendo que 2500 é o limite da nossa paciência. Isso, claro, se não houver paredão no mesmo dia.
O presidente foi hábil em alugar apoio parlamentar, garantir suporte popular através do (necessário) auxílio emergencial, manter seus seguidores fiéis excitados e armados e enfiar um militar em cada fresta que encontrou na estrutura de governo para comprometer a caserna, como já disse em outros textos. Mas aqui me interessa o comportamento da sociedade após a abertura das portas do inferno.
Neste domingo (28), batemos o recorde de média de óbitos em sete dias: 1.208. É a terceira vez em uma semana que esse recorde é superado, mostrando uma escalada sem precedentes. São 39 dias seguidos com média móvel acima de mil.
Admira que Bolsonaro não tenha celebrado isso andando de jet ski, como fez quando chegamos a 10 mil mortos em maio, ou com um comentário criticando máscaras e o isolamento, como fez, nesta quinta (25), ao atingirmos 1.582 mortos em 24 horas.
Há quem não pode se isolar porque o tamanho de sua casa ou de sua conta bancária não permitem, tendo que servir entregando comida ou limpando a sujeira de quem ganhou na loteria da vida.
Mas há uma parcela que tem consciência plena de que o comportamento irresponsavelmente desnecessário gera mortes, mas simplesmente deu de ombros por ser mais jovem, mais rico ou mais crédulo em falsos líderes religiosos que dizem, a serviço do diabo, que a fé em Deus torna o uso de máscaras desnecessário.
O presidente conta com uma montanha de desempregados para pressionar o país, que está cansado de isolamento e distanciamento, a voltar à normalidade. Quer que a população proteste nas ruas sim, mas contra todo e qualquer político que coloque entraves a isso em nome da saúde pública. E isso produz cenas como deste final de semana, de atos contra lockdowns.
Também aposta que muita gente não vai se insubordinar contra ele, mas junto a ele, adotando seu discurso de que o combate à covid traz o caos porque impede as pessoas de trabalharem e de serem felizes. Finge que não sabe que não é a quarentena que atrapalha a economia, mas a doença por afastar trabalhadores infectados. Faz um cálculo macabro, de que 255 mil mortos não são nada comparado a 14 milhões de desempregados ou 210 milhões de habitantes.
E busca convencer a população que não precisamos de imunização, mentindo que elas não funcionam ou que colocam em risco a vida das pessoas.
A solução, para ele, é todos irem para a rua pegar covid e que os mais fortes sobrevivam, terceirizando os impactos negativos decorrentes a governadores e prefeitos que tentaram salvar vidas. Parece seleção natural, mas não é, exatamente porque quem tem mais dinheiro se dará melhor no final das contas.
Claro que há muita gente mobilizada para impedir que a necropolítica presidencial continue ceifando vidas, e que vem conseguindo resultados. Mas não o bastante. Além do mais, manifestações de massa são um contrassenso em uma pandemia que impede o naco responsável da sociedade de se aglomerar. Isso sem contar que a grande maioria dos brasileiros, que está operando milagres diariamente para sobreviver, nem teria tempo para isso.
Como já disse aqui no começo do ano, o sucesso do processo de banalização da morte fomentado por Bolsonaro mostra que o Brasil vai sair dessa crise sanitária mais à sua imagem e semelhança: um país mais insensível à dignidade humana, com cada um lutando, como ele, por sua própria alegria e sobrevivência. E que se dane o resto.
Fonte: UOL - Leonardo Sakamoto
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